Por Aurélio Vidal
Sob o sol firme do Alto Rio Pardo, entre as linhas verdes de café irrigado no semiárido mineiro, conheci o Senhor Félix — um homem cuja trajetória é digna de ser contada entre as mais improváveis epopeias da agricultura brasileira. Ele me recebeu em sua fazenda, no município de Taiobeiras, com um sorriso acolhedor e um brilho nos olhos de quem plantou sonhos onde quase ninguém acreditaria possível fazê-lo germinar.
Félix nasceu em Angola e construiu uma carreira sólida por 17 anos na gigante Bayer, sendo dois anos e meio vividos na Alemanha. “É difícil acreditar como vim parar por aqui”, disse-me com leve ironia e riso solto, enquanto caminhávamos por entre os cafezais.
A conexão com o café vem de longe. “Eu conheço o café do Brasil como quem conhece a palma da mão”, confidenciou. Foi em Portugal que seu destino começou a se traçar de forma definitiva: de lá partiu para Bragança Paulista, Pouso Alegre, Sul de Minas… “Nasci no meio do café. A ‘paia’ foi meu berço”, contou. Envolveu-se de corpo e alma em todos os processos da produção cafeeira. Seu desejo era dominar cada etapa — e conseguiu.
Foi durante essa jornada que conheceu o também produtor Carlos Humberto, referência e pioneiro no setor, em terra do Alto Rio Pardo. “Naquele momento, eu já tinha juntado algum dinheiro e comecei a pensar em um novo projeto.” Laurindo, seu amigo e parceiro de ideias, sugeriu conhecer o Norte de Minas. Visitaram Jaíba, Janaúba… mas algo lhes dizia que não era ali o lugar ideal para o café. Foi quando chegaram a Taiobeiras.
“Quando pisei aqui, senti algo diferente. Era um lugar seco, castigado, mas com um povo forte. Decidi apostar.” Investiu em café irrigado numa região onde a seca dura até 11 meses. Era uma aposta arriscada. A Barragem de Berizal estava em construção, projeto iniciado ainda no governo FHC. “O dinheiro que já gastaram dava pra fazer três barragens. E está lá, parada até hoje”, criticou.
Nos anos seguintes, enfrentou mudanças drásticas nas exigências ambientais. “Naquela época, era possível desmatar com licença. Agora dizem que aqui é Mata Atlântica, coisa que nunca foi”, apontou. Mesmo assim, comprou duas fazendas — uma em Taiobeiras, outra em Machado Mineiro — e, apesar das dúvidas e desânimos, encarou os desafios. “Foi a amplitude térmica do Alto Rio Pardo que me animou a seguir. E deu certo.”
Hoje, Félix administra um império verde: 300 hectares de café e 200 hectares de eucalipto. Começou com 100 hectares, logo após deixar a Bayer. “Meu pai disse que eu era louco. ‘Vai pra um lugar sem água?’ — me disse. Mas depois que colhemos a primeira safra, ele veio ver e se encantou.” Por muito tempo, viajou 2.500 km entre as propriedades e as cidades de Montes Claros ou Vitória da Conquista para manter tudo funcionando.
Mas nem tudo são flores no sertão da cafeicultura. “A Cemig é o nosso maior problema. Falta de energia elétrica de qualidade gera prejuízos constantes. Queima bomba, motor, painel. Pagamos caro por um serviço que não chega. E ainda somos acusados de trabalho escravo quando registramos alguém que perde benefícios sociais”, desabafou.
Mesmo com todas essas dificuldades, sua produtividade é o dobro da média nacional: 55 sacas por hectare, contra 27. “Isso porque não deixo um grão pra trás”, garantiu. Seus pivôs centrais irrigam com precisão, e os tanques de gotejo armazenam até 10 milhões de litros de água. “É mais caro, mas uso menos água. Aqui, tudo precisa ser planejado.”
A sustentabilidade é parte do DNA das fazendas. “100% dos resíduos são reciclados. Quem polui é a cidade, não o campo”, defende. As propriedades contam ainda com tecnologia eletrônica que separa os grãos de acordo com o cliente — um avanço raro na região.
Na foto acima, estou acompanhado do valoroso produtor Félix e Lucas Sucupira, jovem produtor e presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Taiobeiras, que vem se destacando pelo trabalho em defesa do homem do campo, especialmente dos cafeicultores da região.
A paixão pelo que faz é visível em cada palavra. “Montamos sete secadores a ar quente em uma área de 20 mil metros quadrados. O café sai com uma qualidade incomparável. E ainda assim, enfrentamos perdas por conta da energia. É revoltante.”
Em sua voz há indignação, mas também esperança. “Nosso café passa pelo lavador, o cereja vai para o secador no dia seguinte. E depois, aos tanques de captação, longe dos lençóis freáticos. Não contaminamos, respeitamos a natureza.”
Concluí a entrevista com a certeza de que ali, em meio ao calor, à poeira e à coragem, nasce um dos melhores cafés do mundo. Puro. Forte. Resiliente. Como o próprio Félix.