– Por Aurélio Vidal
A história, com sua pena paciente, acaba de registrar três décadas de um dos capítulos mais curiosos da vida mineira: o tempo das emancipações municipais. Foi ali, em meados dos anos 1990, que o mapa de Minas se redesenhou com pressa e esperança. Surgiram noventa e sete novos municípios — frutos de um sonho coletivo, mas também de uma política apressada, nascida das Leis nº 12.030 e 12.050, de 1995, que libertaram do jugo dos distritos uma centena de pequenas comunidades.
Naqueles tempos, eu ainda cruzava o sertão como um mascate errante. Carregava nas costas um balaio de sonhos, cadernos e palavras. De cidade em cidade, de currutela em currutela, batia de porta em porta levando mais curiosidade que mercadoria. E foi assim, de estrada em estrada, que testemunhei o nascimento dessas novas cidades — algumas por força da vontade do povo, outras pela ambição dos homens do poder.
Recordo-me de quando acreditava que tudo aquilo era um sinal de progresso. Havia no ar um entusiasmo quase ingênuo, uma crença de que a criação de um município bastaria para fazer brotar asfalto, escola e dignidade. Eu mesmo cheguei a incentivar um velho amigo, o Santo “Buxo”, um valente comerciante que fez história, lá pelas bandas do então distrito de Campo Azul. Homem simples, sonhador, que se empenhou com alma e suor na campanha pela emancipação. Organizou reuniões, mobilizou vizinhos e até ergueu, uma pequena vila de palha, só para alcançar o número mínimo de moradores exigido pela lei.
Mas Santo “Buxo” partiu antes que o sonho se concretizasse. Não chegou a ver o dia em que Campo Azul virou cidade. E até hoje, quando volto por aquelas paragens, sinto que a memória dele se mistura com o vento que sopra sobre as ruas (que outrora, de chão batido) já asfaltadas.
Também vi a euforia de outros lugares: a festa em Pitinha, hoje São João da Lagoa; o orgulho recém-nascido de Montezuma; o sorriso de Guaraciama e Berizal; o brado esperançoso de Curral de Dentro e da pequena Patís, antes distrito de Mirabela. Eram tempos de fé e ilusão, quando cada povoado sonhava ter seu próprio brasão, sua prefeitura e seu hino.
Mas, com o passar dos anos, percebi que o sonho não se sustentava apenas com decretos e assinaturas. Faltou planejamento, sobrou improviso. Criaram-se cidades, mas não se criaram caminhos. E aquela onda emancipatória, que parecia promessa de futuro, deixou atrás de si rastros de dependência e fragmentação.
Hoje, quando volto a percorrer o mesmo sertão, já não como mascate, mas como jornalista, percebo que o tempo cobrou seu preço.
O que nasceu da esperança agora busca, com esforço, o equilíbrio entre o que é cidade no papel e o que é vida de verdade.
Algumas dessas novas cidades floresceram — como a antiga Pitinha, que hoje se apresenta como São João da Lagoa: linda, altiva e bem cuidada.
Montezuma, por sua vez, desponta como um exemplo de evolução e prosperidade, mantendo viva a essência do seu povo e o orgulho de suas origens.
Mas muitas outras, assim como velhas conhecidas do sertão, vão se apagando aos poucos, vencidas pela ganância, pela desordem e pela sede de poder.
Montezuma – Antiga Água Quente
E assim sigo, testemunha e narrador dessas terras que amo — observando o sertão que se dividiu em nomes e fronteiras, mas continua sendo o mesmo coração mineiro que pulsa teimoso sob o sol e o pó da estrada.